A partir de hoje postarei as decisões dispostas em informativos do STF sobre o "estado de coisas inconstitucional", pensamento configurado pela Corte Constitucional da Colômbia, diante das seguintes situações: violação generalizada e sistêmica de direitos fundamentais; inércia ou incapacidade reiterada e persistente das autoridades públicas em modificar a conjuntura; transgressões a exigir a atuação não apenas de um órgão, mas sim de uma pluralidade de autoridades.
São decisões importantes, com fulcro no Pacto dos Direitos Civis e Políticos e da Convenção Interamericana de Direitos Humanos.
Tal processo atua em um dos nossos maiores gargalos: o sistema prisional, direcionando diretrizes aos juízes e estabelecendo ordens para a União quanto ao orçamento do Fundo Penitenciário Nacional.
Segue a primeira parte.
ANA LÚCIA DE OLIVEIRA
Advogada
____________________________________________________________________
Brasília, 24 a 28 de agosto de 2015 Nº
796
Data de
divulgação: 3 de setembro de 2015
Sistema carcerário: estado de coisas inconstitucional e violação
a direito fundamental - 1
O Plenário iniciou julgamento de medida cautelar em arguição de
descumprimento de preceito fundamental em que se discute a configuração do
chamado “estado de coisas inconstitucional” relativamente ao sistema
penitenciário brasileiro. Nessa mesma ação também se debate a adoção de
providências estruturais com objetivo de sanar as lesões a preceitos
fundamentais sofridas pelos presos em decorrência de ações e omissões dos
Poderes da União, dos Estados-Membros e do Distrito Federal. No caso, alega-se
estar configurado o denominado, pela Corte Constitucional da Colômbia, de
“estado de coisas inconstitucional”, diante da seguinte situação: violação
generalizada e sistémica de direitos fundamentais; inércia ou incapacidade
reiterada e persistente das autoridades públicas em modificar a conjuntura;
transgressões a exigir a atuação não apenas de um órgão, mas sim de uma
pluralidade de autoridades. O Ministro Marco Aurélio (relator) deferiu,
parcialmente, a medida liminar para determinar que os juízes e tribunais: a) motivassem
expressamente, em casos de decretação ou manutenção de prisão provisória, por
que não teriam sido aplicadas medidas cautelares alternativas à privação de
liberdade, estabelecidas no art. 319 do CPP; b) observassem os artigos 9.3 do
Pacto dos Direitos Civis e Políticos e 7.5 da Convenção Interamericana de
Direitos Humanos a fim de que se realizasse em até 90 dias audiências de
custódia, bem como viabilizasse o comparecimento do preso perante a autoridade
judiciária no prazo máximo de 24 horas, contados do momento da prisão; c)
considerassem o quadro dramático do sistema penitenciário brasileiro no momento
de concessão de cautelares penais, na aplicação da pena e durante o processo de
execução penal; e d) estabelecessem, quando possível, penas alternativas à
prisão, ante a circunstância de a reclusão ser sistematicamente cumprida em
condições muito mais severas do que as admitidas pelo arcabouço normativo. O
relator determinou, ainda, que a União liberasse o saldo acumulado do Fundo
Penitenciário Nacional - FUNPEN e não realizasse novos contingenciamentos.
Porém, indeferiu o pedido de abrandamento dos requisitos temporais e abatimento
do tempo de prisão em razão de condições desumanas do sistema carcerário.
Ressaltou que a disciplina legal a respeito dessa questão não poderia ser
flexibilizada em abstrato. A contagem de tempo para a fruição desses direitos
deveria ser feita caso a caso. Quanto ao pleito de compensação do tempo de
custódia definitiva, frisou que faltaria previsão legal. Da mesma forma, por
prejuízo, indeferiu o pedido relativo ao envolvimento do CNJ para o implemento
dessas medidas.
ADPF 347 MC/DF, rel. Min. Marco Aurélio, 27.8.2015. (ADPF-347)
Sistema carcerário: estado de coisas inconstitucional e violação
a direito fundamental - 2
Preliminarmente, o relator assentou a adequação do instrumento.
Reputou preenchidos os requisitos de violação de preceitos fundamentais, de
impugnação de atos do poder público e de inexistência de outro meio eficaz de
sanar a lesividade. Observou que os direitos apontados como ofendidos
consubstanciariam preceitos fundamentais da dignidade da pessoa humana, da
vedação de tortura e de tratamento desumano, da
assistência judiciária e dos direitos sociais à saúde, educação, trabalho e segurança dos presos. Ponderou que haveria
relação de causa e efeito entre atos comissivos e omissivos dos Poderes da
União, dos Estados-Membros e do Distrito Federal e o quadro de transgressão de
direitos relatado. Entendeu cabível a ação, uma vez que não existiria, no
âmbito do controle abstrato de normas, instrumento diverso mediante o qual
pudessem ser impugnados, de forma abrangente e linear, os atos relacionados às
lesões a preceitos fundamentais articuladas. Notou que no sistema prisional
brasileiro ocorreria violação generalizada de direitos fundamentais dos presos
no tocante à dignidade, higidez física e integridade psíquica. As penas
privativas de liberdade aplicadas nos presídios converter-se-iam em penas
cruéis e desumanas. Nesse contexto, diversos dispositivos constitucionais
(artigos 1º, III, 5º, III, XLVII, e, XLVIII, XLIX, LXXIV, e 6º), normas
internacionais reconhecedoras dos direitos dos presos (o Pacto Internacional
dos Direitos Civis e Políticos, a Convenção contra a Tortura e outros
Tratamentos e Penas Cruéis, Desumanos e Degradantes e a Convenção Americana de
Direitos Humanos) e normas infraconstitucionais como a LEP e a LC 79/1994, que
criara o FUNPEN, teriam sido transgredidas. Em relação ao FUNPEN, os recursos estariam
sendo contingenciados pela União, o que impediria a formulação de novas
políticas públicas ou a melhoria das existentes e contribuiria para o
agravamento do quadro. Destacou que a forte violação dos direitos fundamentais
dos presos repercutiria além das respectivas situações subjetivas e produziria
mais violência contra a própria sociedade. Os cárceres brasileiros, além de não
servirem à ressocialização dos presos, fomentariam o aumento da criminalidade,
pois transformariam pequenos delinquentes em “monstros do crime”. A prova da
ineficiência do sistema como política de segurança pública estaria nas altas
taxas de reincidência. E o reincidente passaria a cometer crimes ainda mais
graves. Consignou que a situação seria assustadora: dentro dos presídios,
violações sistemáticas de direitos humanos; fora deles, aumento da
criminalidade e da insegurança social.
ADPF 347 MC/DF, rel. Min. Marco Aurélio, 27.8.2015. (ADPF-347)
Sistema carcerário: estado de coisas inconstitucional e violação
a direito fundamental - 4
O Ministro Marco Aurélio registrou que a responsabilidade por
essa situação não poderia ser atribuída a um único e exclusivo poder, mas aos
três — Legislativo, Executivo e Judiciário —, e não só os da União, como também
os dos Estados-Membros e do Distrito Federal. Ponderou que haveria problemas
tanto de formulação e implementação de políticas públicas, quanto de
interpretação e aplicação da lei penal. Além disso, faltaria coordenação
institucional. A ausência de medidas legislativas, administrativas e
orçamentárias eficazes representaria falha estrutural a gerar tanto a violação
sistemática dos direitos, quanto a perpetuação e o agravamento da situação. O
Poder Judiciário também seria responsável, já que aproximadamente 41% dos
presos estariam sob custódia provisória e pesquisas demonstrariam que, quando
julgados, a maioria alcançaria a absolvição ou a condenação a penas
alternativas. Ademais, a manutenção de elevado número de presos para além do
tempo de pena fixado evidenciaria a inadequada assistência judiciária. A
violação de direitos fundamentais alcançaria a transgressão à dignidade da
pessoa humana e ao próprio mínimo existencial e justificaria a atuação mais
assertiva do STF. Assim, caberia à Corte o papel de retirar os demais poderes
da inércia, catalisar os debates e novas políticas públicas, coordenar as ações
e monitorar os resultados. A intervenção judicial seria reclamada ante a
incapacidade demonstrada pelas instituições legislativas e administrativas.
Todavia, não se autorizaria o STF a substituir-se ao Legislativo e ao Executivo
na consecução de tarefas próprias. O Tribunal deveria superar bloqueios
políticos e institucionais sem afastar esses poderes dos processos de
formulação e implementação das soluções necessárias. Deveria agir em diálogo
com os outros poderes e com a sociedade. Não lhe incumbira, no entanto, definir
o conteúdo próprio dessas políticas, os detalhes dos meios a serem empregados.
Em vez de desprezar as capacidades institucionais dos outros poderes, deveria
coordená-las, a fim de afastar o estado de inércia e deficiência estatal
permanente. Não se trataria de substituição aos demais poderes, e sim de
oferecimento de incentivos, parâmetros e objetivos indispensáveis à atuação de
cada qual, deixando-lhes o estabelecimento das minúcias para se alcançar o
equilíbrio entre respostas efetivas às violações de direitos e as limitações
institucionais reveladas. Em seguida, o julgamento foi suspenso.
ADPF 347 MC/DF, rel. Min. Marco Aurélio, 27.8.2015. (ADPF-347)