domingo, 16 de março de 2014

Decisão importante sobre surdez unilateral

Recebi o e-mail de um amigo, Ronan Geraldo Silva, pessoa com surdez unilateral de Piumhi/MG, que por longos anos luta na justiça para o reconhecimento de um direito, que é de concorrer à vaga reservada às pessoas com deficiência em concurso que o desclassificou por entender que a surdez unilateral não se enquadra no conceito de pessoas com deficiência.
O MM. Juiz de 1º grau assim entendeu e Ronan recorreu para o Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Eis abaixo a brilhante decisão da 18ª Câmara Cível do Insigne Tribunal.
Peço venia ao meu amigo Ronan Geraldo Silva para transcrever texto de e-mail: 
"Tem todo o meu apoio para divulgar a decisão no seu blog, afinal, um de meus desejos quando ingressei em juízo era descobrir minha condição, mas principalmente, descobrindo-a, por via reflexa, ajudar a tantas pessoas que passam pelo mesmo problema, pois quando pesquisei na net eu encontrei um MAR de pessoas que enfrentam a mesma interpretação EXCLUDENTE de alguns juízes que insistem em decidir pela interpretação literal da norma jurídica, se esquecendo, que no caso de princípio Constitucional de inclusão, a interpretação deve ser extensiva, ao contrário do que fazem.
Mas graças ao bom Deus e a pessoas como vocês que me incentivaram e incentivam a lutar, a minha gota de contribuição no oceano está aí! E espero que eu e outras pessoas consigam mais gotas, a ponto de vencer a resistência."

Sem mais...somente parabenizar este operador do direito, Ronan Geraldo Silva, por sua luta constante pela justiça.
_________________________________
EMENTA: CONCURSO PÚBLICO – CONCORÊNCIA ÀS VAGAS DE PORTADORES DE NECESSIDADES ESPECIAIS – SURDEZ UNILATERAL -– CANDIDATO DESCLASSIFICADO PARA A VAGA DE DEFICIENTE FÍSICO – IMPOSSIBILIDADE.
Restando demonstrado nos autos que o autor possui perda auditiva neurossensorial à direita superior aos 41 dB estabelecidos no art. 4º,II do Decreto 3.298/99, a ele deve ser assegurada a reserva de vagas destinadas aos deficientes físicos.
Apelação Cível  Nº 1.0515.10.001238-1/001 - COMARCA DE Piumhi  - Apelante(s): RONAN GERALDO SILVA - Apelado(a)(s): FURNAS CENTRAIS ELéTRICAS S/A.

A C Ó R D Ã O

Vistos etc., acorda, em Turma, a 18ª CÂMARA CÍVEL do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, na conformidade da ata dos julgamentos em dar provimento.
DES. MOTA E SILVA
Relator.



Des. Mota e Silva (RELATOR)
V O T O
O apelante, Ronan Geraldo Silva, alegando que possui deficiência auditiva unilateral total, ingressou com a presente ação ordinária com pedido liminar cumulada com indenização por danos morais contra a apelada, Furnas Centrais Elétricas S.A., visando a sua investidura no cargo de técnico eletrotécnico nos quadros dos servidores da ré e o ressarcimento pelos danos morais que alega ter sofrido em razão da sua desclassificação nas vagas destinadas aos portadores de deficiência no concurso público previsto no Edital nº005/2005 da ré.

O pedido de concessão de liminar foi indeferido (f.72-74 TJ).

De acordo com a certidão da Secretaria do Juízo a ré foi regularmente citada e não apresentou contestação (f.111v TJ).

Ao proferir a sentença o MM. Juiz de Direito da 2ª Vara Cível da Comarca de Piumhi, Christian Garrido Higuchi, julgou improcedente o pedido inicial ao fundamento de que a perda auditiva unilateral total não configura deficiência para fins de enquadrar o autor como “pessoa portadora de deficiência” (f.144-147 TJ).

Através das razões recursais (f.149-176 TJ) o autor pretende a reforma da sentença alegando em síntese que o inciso II do art.4º do Decreto Federal 3.298/1999 deve ser interpretado em conjunto com o art. 3º do mesmo diploma legal. Aduz que a jurisprudência usada na fundamentação da sentença está vencida, transcrevendo a jurisprudência e doutrina que entende a seu favor. Ao final requer a reforma da sentença.

Não foram apresentadas contrarrazões pela parte ré (f.178v TJ).

É o relatório.

Observo que o apelante está litigando sob o pálio da assistência judiciária (f.74 TJ).

Conheço do recurso porque regular e tempestivo. Presentes os pressupostos subjetivos e objetivos de admissibilidade recursal.

Narram os autos que o apelante se inscreveu em concurso público para provimento de cargo de técnico – nível médio, da apelada, edital n. 005/2015 (f.20-42).

Em razão de ser portador de Disacusia Neurossensorial Profunda no ouvido direito, requereu sua inscrição como candidato portador de necessidades especiais e aprovado em 1º (primeiro) lugar nas provas realizadas (f.44). No entanto, o apelante foi surpreendido com o parecer do Departamento de Saúde de Furnas que considerou que o candidato não é portador de deficiência conforme Decreto nº 3.298/99 em razão da deficiência auditiva ser unilateral, mantendo-o na condição de concorrente a vagas regulares (f.64-65TJ), o que deu ensejo à propositura da presente ação.

De início, cabe registrar que inexiste discussão acerca da perda auditiva direita pelo apelante, tratando-se de fato incontroverso nos autos, reconhecido pela apelada no ofício juntado com a petição inicial (f.64-65 TJ).

A controvérsia recai sobre a caracterização da surdez unilateral como deficiência física.

O Decreto 3.298/99, com as alterações introduzidas pelo Decreto 5.296/04, aplicáveis ao concurso em questão, cujo edital é de 2005, quando já vigentes as inovações, dispõe, no artigo 3º, sobre o conceito de deficiência física, nos termos seguintes:

"Art. 3º Para os efeitos deste Decreto, considera-se:
I - deficiência - toda perda ou anormalidade de uma estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica que gere incapacidade para o desempenho de atividade, dentro do padrão considerado normal para o ser humano;
II - deficiência permanente - aquela que ocorreu ou se estabilizou durante um período de tempo suficiente para não permitir recuperação ou ter probabilidade de que se altere, apesar de novos tratamentos; e
III - incapacidade - uma redução efetiva e acentuada da capacidade de integração social, com necessidade de equipamentos, adaptações, meios ou recursos especiais para que a pessoa portadora de deficiência possa receber ou transmitir informações necessárias ao seu bem-estar pessoal e ao desempenho de função ou atividade a ser exercida."

O artigo 4º, por sua vez, especifica as anomalias que caracterizam seu portador como deficiente físico:

"Art. 4º - É considerada pessoa portadora de deficiência a que se enquadra nas seguintes categorias:I - (...) II - deficiência auditiva - perda bilateral, parcial ou total, de quarenta e um decibéis (dB) ou mais, aferida por audiograma nas freqüências de 500HZ, 1.000HZ, 2.000Hz e 3.000Hz; (Redação dada pelo Decreto nº 5.296, de 2004 - grifei)"

Constata-se, portanto, que, para fins de aplicação da legislação que assegura aos portadores de deficiência o ingresso no mercado de trabalho, inclusive, com reserva de vagas, em concursos públicos, considera-se portador de deficiência, a pessoa que apresentar perda auditiva bilateral, parcial ou total, de pelo menos 41 db.

Uma interpretação gramatical do inciso II do art. 4º pode mesmo levar a crer que a surdez, para caracterizar deficiência auditiva, deve, necessariamente, ser bilateral.

Extrai-se da avaliação auditiva da apelante:

“OD. Perda auditiva com ausência de respostas em todas as freqüências” (f.58).

Referido exame acusa ainda que a perda auditiva do apelante é bem superior a 41db, chegando a 120 db, embora unilateral (hipoacusia neuro-sensorial profunda – f.58).

Registre-se que, tratando-se de dispositivo que visa assegurar direito fundamental, a saber, a isonomia entre as pessoas portadoras de deficiência e as que não apresentam tais limitações, havendo dúvida quanto à sua interpretação, esta deve ser solucionada de maneira extensiva, de modo a não prejudicar a pessoa portadora da anomalia.

No caso em exame, impende a concretização dos princípios constitucionais da isonomia, razoabilidade e da proporcionalidade.

Dissertando sobre o princípio da razoabilidade, ensina Luís Roberto Barroso (Interpretação e Aplicação da Constituição, Saraiva, 3ª ed.,1999, p.23400):

“O princípio, naturalmente, não liberta o juiz dos limites e possibilidades oferecidos pelo ordenamento. Não é de voluntarismo que se trata. A razoabilidade, no entanto, oferece uma alternativa de atuação construtiva do Judiciário para a produção do melhor resultado, ainda quando não seja o único possível ou mesmo aquele que mais obviamente resultaria da aplicação acrítica da lei.
O princípio da razoabilidade faz uma imperativa parceria com o princípio da isonomia. À vista da constatação de que legislar, em última análise, consiste em discriminar situações e pessoas por variados critérios, a razoabilidade é o parâmetro pelo qual se vai aferir se o fundamento da diferenciação é aceitável e se o fim visado é legítimo."

Não se pode concluir, data venia, que a pessoa que apresenta perda auditiva total em um dos ouvidos e tenha as funções do outro preservadas tenha menos limitações e dificuldades que a portadora de perda parcial nos dois ouvidos.

É dizer, não se mostra razoável e proporcional a dicção do Decreto regulamentador, ao desequiparar uma limitação parcial na audição dos dois ouvidos, com a de perda total de um. Acredito que as situações são bastante similares, ou seja, há uma deficiência acentuada, nos dois casos, a impedir o normal ingresso no escasso mercado de trabalho. Então, essa restrição de direito não se me afigura estar de acordo com a melhor e mais justa exegese e com a necessária concretude que se deve dar aos princípios constitucionais.

Impedir o apelante, que sofreu perda auditiva profunda em um dos ouvidos, de concorrer a uma vaga destinada aos portadores de deficiência, viola o princípio da isonomia, estabelecido no caput do artigo 5º, da Constituição Federal como fundamento da República Federativa do Brasil.

O apelante, que apresenta perda auditiva total no ouvido direito, sofre, tal qual se a deficiência fosse parcial e bilateral, limitações no desempenho de suas atividades, impondo-se reconhecer que deve ser considerado como portador de deficiência física, para fins de ingresso em cargos públicos.

“ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA. CONCURSO PÚBLICO. CANDIDATO PORTADOR DE DEFICIÊNCIA AUDITIVA UNILATERAL. RESERVA DE VAGA. POSSIBILIDADE. DILAÇÃO PROBATÓRIA. DESNECESSIDADE. SURDEZ AFERIDA POR JUNTA MÉDICA. 1. A solução da controvérsia não exige dilação probatória, pois não se discute o grau de deficiência do recorrente, que já foi aferido por junta médica, mas, sim, determinar se a surdez unilateral configura deficiência física, para fins de aplicação da legislação protetiva. 2. Nos termos da Lei nº 7.853/1989, regulamentada pelos Decretos nos 3.298/1999 e 5.296/2004, toda perda de audição, ainda que unilateral ou parcial, de 41 decibéis (dB) ou  mais, aferida por audiograma nas frequências de 500HZ, 1.000HZ, 2.000Hz e 3.000Hz, caracteriza deficiência auditiva. 3. O laudo médico oficial confirmou que o candidato possui "deficiência acústica unipolar" no ouvido esquerdo, o que se revela suficiente para a caracterização da deficiência, porquanto a bilateralidade da perda auditiva não é legalmente exigida nessa seara. 4. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça firmou entendimento de que a pessoa que apresenta surdez unilateral tem direito a vaga reservada a portadores de deficiência. A propósito: AgRg no AREsp 22.688/PE, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 24/4/2012, DJe 2/5/2012; AgRg no RMS 34.436/PE, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 3/5/2012, DJe 22/5/2012; AgRg no REsp 1.150.154/DF, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 21/6/2011, DJe 28/6/2011; RMS 20.865/ES, Rel. Ministro PAULO MEDINA, SEXTA TURMA, julgado em 3/8/2006, DJ 30/10/2006. 5. Agravo regimental a que se nega provimento.” (AgRg no RMS 24445 / RS; Relator Ministro Og Fernandes; 6ªT., DJe 17/10/2012)

A questão, destarte, deve ser solucionada através do processo de interpretação, diante do caso concreto, através do chamado "método hermenêutico concretizador" de que falam os publicistas.

O Decreto, portanto, no inciso II do § 4º não se mostra razoável nem proporcional, sendo que desiguala situações similares (quais sejam, a perda total da audição de um ouvido com a perda parcial nos dois).

Diante desse quadro, a condição de deficiência da capacidade de ouvir - surdez unilateral - da mesma forma como ocorre com a visão monocular, deve ser reconhecida como direito do candidato de concorrer, em concurso público, às vagas reservadas aos deficientes.

É o que dispõe a Súmula 377 STJ:

“O portador de visão monocular tem direito de concorrer, em concurso público, às vagas reservadas aos deficientes.”

Com tais considerações, DOU PROVIMENTO ao recurso de apelação do autor para reformar a sentença de 1ª Instância e julgar procedente o pedido inicial, garantindo ao autor todos os direitos em razão de sua aprovação no concurso público desde a data de sua desclassificação ocorrida em 03/11/2008 (f.64-65 TJ), condenando a ré ao pagamento das custas e despesas processuais bem como honorários advocatícios no valor de R$2.000,00 (dois mil reais).



Des. Arnaldo Maciel (REVISOR) - De acordo com o(a) Relator(a).
Des. João Cancio - De acordo com o(a) Relator(a).


SÚMULA: "DERAM PROVIMENTO"