quinta-feira, 7 de junho de 2012

Teste identifica 3,5 mil anomalias em fetos



Exame é feito com amostras de sangue da mãe e da saliva do pai. Dados, com 98% de exatidão, podem dar mais segurança na hora do parto, mas acendem discussão sobre ética


Roberta Machado
Publicação: 07/06/2012 04:00

Pesquisadores da Universidade de Washington, nos Estados Unidos, desenvolveram um exame capaz de revelar o mapa genético de um bebê ainda durante a gravidez por meio de uma técnica que usa somente o sangue da mãe e uma amostra de saliva do pai. O método, já testado em fetos, foi descrito em um estudo publicado ontem na revista científica Science Translational. Atualmente, para avaliar a condição de saúde detalhada de um bebê, é necessária a realização de uma amniocentese, exame que retira parte do líquido amniótico do útero por meio de uma agulha, ou da biopsia de vilosidades coriônicas, substâncias presentes na superfície da bolsa amniótica. O primeiro procedimento resulta na morte da criança em 1% dos casos.

Em 2010, pesquisadores chineses propuseram uma forma de identificar distúrbios no DNA usando apenas o sangue materno, mas o teste ainda exigia um exame de placenta e não descrevia mutações do feto que não fossem herdadas dos pais, as chamadas mutações de novo. Os norte-americanos propuseram, então, uma forma menos invasiva e mais precisa de usar o sangue da mãe na detecção de anomalias genéticas. Assim como esse método, a nova técnica apoia-se na descoberta recente de que as informações genéticas de um feto podem ser encontradas no plasma do sangue da mãe, na forma de DNA livre.

Sabendo que cerca de 10% do DNA presente na corrente sanguínea de uma gestante são originados no feto, os pesquisadores recolheram um pouco de sangue de uma mãe que estava na 18ª semana de gestação e colheram uma pequena quantidade de saliva do pai do bebê. Usando uma técnica de sequenciamento em massa, eles conseguiram determinar com rapidez os halotipos do genoma materno e listaram as variações genéticas em cada cromossomo encontrado. A mesma técnica foi aplicada no DNA do pai e do bebê.

Baseados em um modelo estatístico, os geneticistas determinaram quais características genéticas o filho herdou dos pais e quais eram novas. O procedimento, que tem 98% de exatidão, foi aplicado com sucesso também em uma mãe que estava na oitava semana de gravidez, mas exigiu mais detalhamento. Os geneticistas responsáveis pelo projeto garantem que a técnica é capaz de detectar qualquer distúrbio de genes únicos, as chamadas características mendelianas. Caso a técnica seja desenvolvida em larga escala, seria possível descobrir, com poucas semanas de gravidez, a existência de mais de 3,5 mil distúrbios, recessivos ou dominantes.

As técnicas disponíveis até o momento são usadas para detectar anomalias cromossômicas graves ou na investigação dirigida de uma mutação específica já conhecida na família, como a síndrome de Down. No entanto, mesmo que a mãe e o pai de um bebê sejam perfeitamente saudáveis, sempre há o risco de que o bebê sofra mutações, chamadas de novo, que causem problemas como o autismo, a epilepsia ou a esquizofrenia.

No exame proposto pelos pesquisadores norte-americanos, a ideia é fornecer um relatório completo de possíveis doenças, sejam elas suspeitas ou não. “Exames de sangue atuais conseguem detectar apenas um pequeno número de distúrbios. Eles também não checam as causas genéticas subjacentes, o que faz com que, às vezes, tenham resultem em falsos negativos, isso é, não detectam um distúrbio que existe”, comparou Jacob Kitzman, um dos autores do estudo. Com a nova técnica, foi possível descobrir a existência de 39 das 44 mutações de novo de um bebê ainda durante a gravidez.

Os cientistas, no entanto, ainda enfrentam alguns obstáculos na aplicação do método. Os pesquisadores relataram dificuldades em detectar alelos de baixa frequência herdados do genoma parental, assim como em selecionar as variações genéticas vindas da mãe, que se confundem em meio ao plasma materno. Mas o maior impasse apontado por eles é o que fazer com a informação obtida. “Mesmo que possamos prever o genoma de um feto de forma não invasiva, seria difícil traduzir essa sequência e dizer que doença ela representa. O processo também levou várias semanas, mas acreditamos que um aperfeiçoamento o tornaria mais rápido.”

Dificuldades Para especialistas em genética, apesar das limitações do método proposto, ele tem chances de virar um marco nos exames pré-natais. Com maior acesso à detecção de anormalidades do feto, os pais podem se preparar para a criação da criança, e a equipe médica ganha mais informações que colaborem com a segurança do parto. “Com a aplicação em um maior número de casos, certamente serão necessários aprimoramentos à medida que surgem questões específicas para cada caso”, avalia Maria Teresa Vieira, geneticista do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA). “Mas essa é a primeira descrição de um sequenciamento mais completo do DNA fetal presente na circulação materna, e a primeira detecção de variações genéticas de novo sem um método invasivo para a coleta de amostra fetal”, frisa a médica.

No entanto, é grave a questão ética envolvida na previsão de todas as características de uma criança. Em países em que a interrupção da gestação é legalmente aceita, por exemplo, pais podem considerar essa alternativa sempre que uma anormalidade genética for detectada. Segundo o geneticista Salmo Raskin, a obtenção dessas informações em detalhes abre um debate ainda mais grave que o vivido no Brasil sobre a legalização do aborto de anencéfalos. Uma mãe poderia optar por interromper a gravidez baseada em um distúrbio que está presente no código genético do feto, mas que talvez nunca se manifestasse.

Dilema “Existe um dilema ético, religioso, moral e filosófico há anos. Já há casais que fazem exames para saber se o filho está afetado. Agora, um casal poderá saber que o filho terá uma doença aos 40 anos de idade. Esse é um problema que não existe hoje, mas já pode ser imaginado em dois ou três anos”, alertou Raskin. “Não sou contra esse tipo de teste, mas depende muito do que as pessoas querem fazer com a informação”, ressaltou o médico.

O especialista compara o possível cenário com o filme de ficção científica Gaataca, em que, por meio de um exame de sangue, os atores são  capazes de descobrir todos os defeitos genéticos de um indivíduo, levando pais a planejar as características dos filhos por meio da seleção de fetos. “O teste está muito próximo daquilo. Pode-se imaginar essa situação em alguns anos, o que não seria exagero.”