sábado, 10 de dezembro de 2011

Motim da fome


Artigo magnífico escrito por Rubens Goyatá Campante.Importante uma leitura que nos remete ao passado para conhecermos o verdadeiro presente.Importante para todos conhecerem os personagens que conquistaram direitos, que hoje usufruímos, sem pensar como foi a luta para conquistá-los e o preço que alguns pagaram por lutar.Parabéns Rubens, pelo brilhante artigo e explicação!

Conquista do 13º salário foi resultado de luta dos trabalhadores brasileiros no início da década de 1960.Em meio a clima de instabilidade política, empresários se mobilizaram para combater a reivindicação

Rubens Goyatá Campante
Publicação: 10/12/2011 04:00
Contrário à greve de 5 de julho, o presidente João Goulart temia a reação da direita e dos militares
 (João de Almeida/O Cruzeiro/D.A Press)
Contrário à greve de 5 de julho, o presidente João Goulart temia a reação da direita e dos militares
Quase meia centena de mortos, quase meio milhar de feridos, quase um bilhão de prejuízos (....). Ao lado dos que a fome levara ao desespero, os agitadores. E até mesmo ladrões, mais interessados na caixa registradora do que nos sacos de feijão. A concentração da massa popular nas ruas de Caxias, Nilópolis, São João de Meriti e Nova Iguaçu teve início por volta das sete da manhã. Logo em seguida, começaram os saques. O Exército, chamado desde aquela hora, só compareceu à tarde.” Assim o jornalista Alberto Dines descreveu o chamado “O motim da fome”, os saques a estabelecimentos comerciais na Baixada Fluminense que ocorreram durante a greve geral de 5 de julho de 1962, e a reação dos comerciantes e das forças policiais que mataram e feriram centenas de pessoas. 

Primeira greve geral bem-sucedida no país, o movimento tinha motivações políticas e econômicas. Dentre as últimas, a principal referia-se a um direito que, poucos sabem, só foi conquistado depois de uma série de lutas e pressões da qual a greve de 5 de julho de 1962 foi o ápice: o abono natalino, ou 13º salário, que não era, até então, uma obrigação legal. Algumas empresas, especialmente grandes estatais e multinacionais, já o pagavam a seus trabalhadores – sendo que algumas concediam menos que o salário mensal. A grande maioria dos empregadores, porém, não o fazia, até que o Congresso Nacional aprovasse, em 13 de julho de 1962, uma semana depois da greve geral, o projeto do deputado Aarão Steinbruch, criando a Lei 4.090/62, que estabeleceu a obrigatoriedade de os empregados receberem o 13º salário. As associações patronais, então, anunciaram o fim do mundo: a lei que instituíra o 13º, diziam, era demagógica, populista e irresponsável, típica de “agitadores” que queriam mergulhar o país no comunismo; não era por má vontade, insistiam, que a maioria dos trabalhadores não recebia o 13º – era por impossibilidade, ele desestabilizaria a economia, quebraria as empresas, traria desemprego.

Hoje plenamente incorporado à sociedade e à economia nacionais, o 13º foi ferozmente combatido por um discurso que brandia responsabilidade e argumentos técnico-econômicos para disfarçar a exploração do capital sobre o trabalho. Algo recorrente até hoje, e que só é contraposto quando os trabalhadores constroem discursos e ações próprias, alternativas, como ocorreu em julho de 1962.

A greve, deflagrada 18 dias depois de o Brasil conquistar o bicampeonato mundial de futebol – o que põe por terra as análises rasteiras que vinculam os sucessos no futebol a uma suposta “apatia sociopolítica” da população –, afetou sobretudo empresas estatais ou sob controle do governo, embora o setor privado não tenha passado incólume. Em áreas como as de transportes, ferrovias, bancos e portos, a paralisação foi expressiva, assim como nas refinarias e distribuidoras da Petrobras. Cruzaram os braços trabalhadores de várias cidades, como São Paulo, Fortaleza, Belém, Recife, Salvador, Campina Grande, Vitória, Santos, Cubatão, Belo Horizonte, Paranaguá, Itajaí, Criciúma etc. – em nenhuma houve, nem de longe, conflitos como os da Baixada Fluminense. Pois foi no Rio de Janeiro que a greve teve o alcance mais profundo. No então estado da Guanabara a paralisação foi majoritária entre os trabalhadores da construção civil, de telefonia, gráficos e têxteis, e praticamente total entre os bancários, aeroviários, rodoviários, metalúrgicos e trabalhadores de transportes como os carris (bondes) e ferroviários da Central do Brasil.

Justamente por conta da paralisação destes últimos, a população da baixada que se dirigia ao trabalho, na manhã de 5 de julho, ficou sem transporte. A insatisfação do momento, somada à insatisfação crônica com as carências da vida cotidiana, levou aos saques e depredações de casas comerciais. Pegos de surpresa, os comerciantes, a princípio, pouco puderam fazer. À tarde, quando as forças policiais chegaram, atiraram para matar. O alvo preferencial das pilhagens eram as casas comerciais de gêneros de primeira necessidade de estrangeiros, numerosas na região. Então um português, dono de um supermercado, colocou um cartaz na frente de seu estabelecimento: “Aqui é de um brasileiro e é pela legalidade”. Não teve um grão de arroz pilhado.

Motivações políticas As motivações políticas do movimento foram tão importantes quanto as econômicas. Quando o português mentiu que era brasileiro sabia o que fazia: o nacionalismo era um moto social, cultural e político poderoso na época. Pois a greve de julho de 1962 foi justamente contra a formação de um gabinete parlamentar conservador e, como dizia o jargão nacionalista, “entreguista” – qualificação negativa aos que queriam “entregar” as riquezas e a autonomia do país ao imperialismo. A surpreendente renúncia de Jânio Quadros, em agosto de 1961, trouxera o parlamentarismo como solução de compromisso para permitir a seu vice, João Goulart, contornar o veto da direita e dos militares e tomar posse como presidente da República. 

Tancredo Neves, comandante do primeiro gabinete parlamentar, renunciou, em junho de 1962, para concorrer, em outubro, às eleições legislativas. Para sucedê-lo, foi indicado San Tiago Dantas, que os conservadores detestavam por haver conduzido, como ministro das Relações Exteriores, uma política externa não alinhada aos EUA e aberta às nações socialistas. O congresso vetou o nome de Dantas e propôs para o cargo de primeiro-ministro Auro de Moura Andrade, considerado, pelos sindicalistas e forças de esquerda, entreguista e reacionário. O objetivo político principal da greve foi impedir a posse de Auro Andrade e garantir um gabinete nacionalista e comprometido com as “reformas de base” – um amplo conjunto de iniciativas visando a transformar o capitalismo brasileiro, emprestando-lhe uma face mais inclusiva e social. O movimento também foi bem-sucedido nesse ponto: Auro não tomou posse, e chegou-se a um nome de consenso, Brochado da Rocha, para primeiro-ministro. 

O português da baixada também dissera ser pela legalidade. Naquele contexto, clamar pela legalidade era opor-se à implantação do parlamentarismo como artifício para que a lei anterior à renúncia – que determinava a posse do vice-presidente em caso de renúncia do titular – não fosse cumprida e Goulart fosse um presidente da República manietado. Eis o outro grande objetivo político da greve: a antecipação do plebiscito a respeito da manutenção ou não do parlamentarismo, marcado, a princípio, para 1965, quase ao final do mandato presidencial. Esse objetivo não foi conseguido de imediato. Mas do órgão criado para organizar o movimento paredista, o Comando Geral de Greve, surgiu, logo depois, o Comando Geral dos Trabalhadores, CGT, central sindical controlada por dirigentes ligados ao PTB e ao PCB – o partido comunista não estava oficialmente legalizado, mas desde o governo JK seus membros e dirigentes não eram mais perseguidos e tinham liberdade de ação. Em setembro de 1962, o CGT organizou nova greve geral pela antecipação do plebiscito. A consulta, então, foi marcada para janeiro de 1963, e o parlamentarismo foi amplamente rejeitado nas urnas.

Os sindicalistas se supunham e diziam ao lado da legalidade, mas centrais sindicais amplas como o CGT não eram permitidas pela legislação, herdada do Estado Novo varguista – os trabalhadores só poderiam se agrupar em federações estaduais e confederações nacionais da mesma categoria. Mas o governo Goulart fez vista grossa e respaldou o órgão. Jango, entretanto, foi contra a greve de 5 de julho. Argumentava com os sindicalistas que o movimento iria assustar a direita e os militares e insuflar sua reação. A relação dos sindicalistas e da esquerda com Goulart era ambígua e contraditória: às vezes se uniam, mas muitas vezes discordavam frontalmente. Getúlio Vargas destruíra o frágil sindicalismo autônomo que existira no Brasil até a década de 1930 e criara uma estrutura sindical dependente do Estado, o que lhe trouxe a ira da esquerda. Mas também desagradara à direita ao criar toda uma legislação protetora do trabalho, assim como órgãos estatais destinados a aplicá-la, como o Ministério e a Justiça do Trabalho. Goulart, herdeiro direto de Vargas, tinha no trabalhismo oficial, ligado ao Ministério do Trabalho, sua base política. 

Rumo à autonomia Mas o movimento sindical no final dos anos 1950 e início dos anos 1960 dava passos largos em direção a uma atuação mais autônoma. Momento importante desse encaminhamento foi a eleição, em dezembro de 1961, do mineiro Clodsmith Riani para a Presidência da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria (CNTI), a mais importante confederação sindical de então. A eleição de Riani findara o longo domínio, na CNTI, de dirigentes pelegos. Sob seu comando, a entidade teve papel fundamental na organização da greve de julho e do CGT. Goulart prestigiou a mudança na CNTI, comparecendo à posse da diretoria. Prova da injustiça de análises que o colocam favorável ao peleguismo puro e simples. O que Goulart queria – e o levara a entrar em atrito várias vezes com os sindicalistas – era mais cautela, menos açodamento, da parte da esquerda e do movimento trabalhista. 

Embora mantivesse certo ranço paternal do varguismo, há que se reconhecer o cunho reformista – mas de forma alguma revolucionário, como demandava a esquerda e alardeava a direita – de seu projeto político. Os temores de Goulart eram justificados. Um bom exemplo do “clima” da época, que ajudou a preparar o golpe de 1964, é dado por Riani, no depoimento prestado ao Programa de História Oral do Centro de Memória da Justiça do Trabalho de Minas. Deputado estadual, ele contou que, certa vez, na Assembleia, “um deputado da UDN subiu na tribuna e falou que os sindicatos estavam cheios de armas, de Cuba e da URSS, que iríamos usar numa revolução socialista. Peguei o cara pelo braço, quando ele desceu, e perguntei: ‘Quer ir, agora, comigo lá no sindicato e me mostrar onde estão essas armas?’. Ele desconversou”. 

Mas a reação a movimentos como o da greve de julho de 1962 não foi só dos que prepararam, em âmbito nacional, o golpe de 1964. Na Baixada Fluminense o “motim da fome” deixou, a longo prazo, um saldo triste, além dos saques e das mortes: os grupos de extermínio. É o que afirmou, em entrevista a uma revista, o sociólogo carioca José Carlos Alves. “O comércio local passou a perceber que os clientes poderiam, de uma hora para outra, virar saqueadores, devido às péssimas condições de vida. Esse episódio motivou a criação do primeiro grupo de extermínio, batizado de Vigilantes da Ordem.” 

 É lugar-comum a afirmação de que conhecer a história serve para avaliar melhor o presente e preparar o futuro. Por ser lugar-comum não deixa de ser verdadeiro. Assim, quando agora, neste mês, estivermos usando nosso 13º salário, seria bom ter consciência do contexto, dos personagens e das consequências da luta por esse direito dos trabalhadores. A história, o presente e o futuro agradecem.

Rubens Goyatá Campante é doutor em sociologia e pesquisador do Centro de Memória da Justiça do Trabalho de Minas Gerais.